segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

A ecologia e seus riscos

A ecologia e seus riscos
Miguel Reale
Estado de SP, 23/6/01

"São tão complexas e variegadas as razões determinantes do processo histórico que têm sido consideradas parciais ou insuficientes todas as teorias que têm procurado explicar o decurso das civilizações ao longo do tempo.

Poder-se-ia dizer que cada uma delas revela uma nota distintiva da História, desde as otimistas visões unitárias até as interpretações pessimistas que lhe negam qualquer linha de continuidade. Mais perto de uma solução razoável me parecem os pensadores que nos falam em "corsi e ricorsi" (idas e vindas) da História, como o fez Giambattista Vico, o que corresponde às "surgências e insurgências" lembradas por Gilberto Freyre; ou, então, sob outro prisma, aqueles que se referem à "astúcia da razão na História", à moda de Hegel, ou, então, aos fatores da sorte ou "fortuna", como pensava Nicolò Machiavelli, ponto de vista em parte coincidente com a idéia do "acaso" no pensamento de Jacques Monod, sem esquecer o dito popular brasileiro, enaltecido por Alceu de Amoroso Lima, de que "Deus escreve direito por linhas tortas".

De uns tempos para cá, todavia, sob a influência dos estudos de Axiologia, ou Teoria dos Valores, tem-se reconhecido que, não obstante os "contrastes e confrontos", de que tratou Euclides da Cunha, há certos valores que na vida humana adquirem maior consistência e durabilidade. Como tenho escrito ultimamente, penso mesmo que se pode aceitar a existência de "invariantes axiológicas", ou seja, de valores tão constantes que até parecem inatos, como que renovando as concepções idealistas que remontam aos arquétipos de Platão, referência perene da filosofia.

Não se trata, porém, de idéias transcendentes, mas sim de criações históricas que vão compondo o acervo de nossa experiência cultural, merecendo primordial realce o valor da pessoa humana, a meu ver o "valor fonte de todos os valores". Outros há como, por exemplo, os da liberdade, da igualdade (isonomia), da justiça, do bem comum, da privacidade, os quais, no fundo, assinalam progressivas conquistas da ética.

Pois bem, o último desses valores dotados de força imperativa e constante é o ecológico, isto é, o relativo ao valor da natureza em geral e do "meio ambiente" em particualr, adquirindo tal força que por toda parte do mundo surgem "partidos verdes" disputando o poder político.

Compreende-se essa dedicação, pois, em verdade, o progresso tecnológico, sob várias de suas formas, ameaça destruir a natureza. Nesse ponto houve uma inversão de 180 graus, pois, há menos de meio século, a natureza era considerada expressão máxima de estabilidade e segurança, a tal ponto que para muitos o Direito Natural seria a base inamovível da legislação. Agora, ao se perceber que "a natureza morre", apela-se para a lei para salvá-la...

Não há dúvida, por conseguinte, que tudo deve ser feito para preservar os recursos naturais, merecendo louvor iniciativas como a que recentemente criou, na capital paulistana, a Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos.

Reconhecido e proclamado o valor fundamental da natureza, não devemos, todavia, exagerar até o ponto de nos perdermos no "fundamentalismo ecológico", que acaba pondo em risco o bem-estar dos indivíduos e da coletividade.

É preciso, antes de mais nada, reconhecer que não se protege a natureza em si mesma e por si mesma, mas sim enquanto ela constitui o valor condicionante por excelência da vida humana, o que quer dizer que a ecologia se subordina à antropologia, às exigências vitais do ser humano.

Desse modo, quando, para aproveitamento das forças naturais, como, por exemplo, dos potenciais hidráulicos, é necessário destruir parte de uma floresta, não pode de antemão prevalecer uma atitude de absoluta condenação, sendo imprescindível proceder-se a um balanceamento de valores, levando em conta não apenas o altíssimo valor econômico-social da obra projetada, mas também a possibilidade que hoje temos de preservar a fauna e a flora ameaçadas, tal como foi feito em Itaipu, com resultados exemplares. Por sinal que, se na época da construção daquela usina binacional primassem certos credos ambientalistas que há por aí, não teria sido possível construí-la, por se ter de sacrificar o salto de Sete Quedas, submerso pelo imenso reservatório. Mas, se tal fator tivesse ocorrido, que seria do Brasil na imensa crise energética que atualmente nos apavora?

Casos como esse devem ser analisados com serena objetividade, sem fanatismos perigosos, para que as decisões obedeçam a critérios superiores que tenham em vista a melhoria das condições da vida humana.

Infelizmente, não é o que tem acontecido. Para nos limitarmos à questão candente de geração de energia elétrica, bastaria lembrar os casos focalizados pela revista Veja de 6 de junho último, como o da suspensão judicial da construção de uma usina termoelétrica em Cuiabá, por se alegar que sua tubulação de gás iria atravessar uma caverna considerada essencial ao meio ambiente, sendo este também invocado para impedir a construção pela Votorantim de uma hidrelétrica no Vale do Ribeira, fato que se repete quanto à implantação de uma usina, movida a gás natural, em Cubatão. Nem se deve esquecer que, para salvar pequeno trecho de floresta, se impediu uma linha de transmissão que nos podia trazer energia da Argentina.

Tudo isso demonstra que novos critérios devem nortear as decisões do Ministério Público e da Justiça, em se tratando de proteção do meio ambiente, evitando-se que elas redundem em prejuízo para a coletividade nacional.

Não podemos esquecer que a poderosa economia, que logramos constituir, importou em contínuo aproveitamento de bens naturais, à custa de outros de caráter instrumental. Não há dúvida que em muitos casos houve abusos condenáveis, que não se devem repetir, mas, se prevalecessem as exageradas pregações ambientalistas hoje acolhidas, o Brasil teria permanecido contemplando as belezas do litoral, sem sequer dobrar as linhas do Tratado de Tordesilhas... "

Reale, M. (2001, 23 de junho). A ecologia e seus riscos. O Estado de São Paulo, São Paulo.


Fonte: Pensadores Brasileiros

Nenhum comentário: