domingo, 27 de janeiro de 2008

Crítica Arquetípica: Teoria dos Mitos

"Quanto à sociedade humana, a metáfora de que somos todos membros de um corpo tem estruturado a maior parte da teoria política de Platão aos nossos dias. A afirmação de Milton de que "Uma Comunidade devia ser apenas como uma pessoa cristã, com um forte desenvolvimento e a estatura de um homem digno" pertence a uma versão cristianizada dessa metáfora, na qual, como na doutrina da Trindade, a asseveração metafórica completa "Cristo é Deus e Homem" é ortodoxa, e as afirmações arianas e docéticas em termos de comparação ou semelhança, condenadas como heresias. O Leviathan de Hobbes, com seu frontispício original pintando certa quantidade de homúnculos dentro do corpo de um gigante, também se liga, de certo modo, ao mesmo tipo de identificação. A República de Platão, onde o entendimento, a vontade e o desejo do indivíduo surgem como o rei-filósofo, os guardas e os artesãos do Estado, também se funda nessa metáfora, que de fato ainda usamos, sempre que nos referimos a um grupo ou reunião de seres humanos como a um "corpo".

No simbolismo sexual, naturalmente, é mais fácil usar a metáfora "uma só carne" com referência a dois corpos unidos no mesmo corpo pelo amor. The Extasie (O Êxtase) de Donne é um dos muitos poemas baseados nessa imagem, e o Phoenix and the Turtle (A Fênix e a Rola) joga bastante com o abuso cometido contra a razão por essa identidade. Os temas da lealdade, culto do herói, servidores fiéis, e semelhantes, empregam também tal metáfora.

Os mundos animal e vegetal identificam-se um com o outro, e também com os mundos divino e humano, na doutrina cristã da transubstanciação, na qual as formas humanas essenciais do mundo vegetal, a comida e a bebida, a colheita e a vindima, o pão e o vinho, são o corpo e o sangue do Cordeiro, que é também Homem e Deus, e em cujo corpo existimos como numa cidade ou num templo. Ainda aqui a doutrina ortodoxa insiste na metáfora por oposição ao símile, e ainda aqui o conceito de substância ilustra as lutas da Lógica a fim de assimilar a metáfora. Transparece do início das Leis que o simpósio tinha algo do mesmo simbolismo comunial para Platão. Seria difícil encontrar uma imagem mais simples ou mais vívida da civilização humana: nela o homem tenta fechar a natureza e pô-la dentro de seu corpo (social), em vez da refeição sacramental.

As honras convencionais concedidas à ovelha no mundo animal fornecem-nos o arquétipo básico das imagens pastorais, e também metáforas como "pastor" e "rebanho" na religião. A metáfora do rei como pastor de seu povo remonta ao antigo Egito. Talvez o emprego dessa convenção específica seja devida ao fato de que, por estúpidas, meigas, gregárias e facilmente marcadas, as sociedades formadas pelas ovelhas são muito semelhantes às humanas. Mas naturalmente qualquer outro animal seria útil em poesia, se a audiência do poeta estivesse preparada para ele: no início do Brihadaranyaka Upanishad, por exemplo, o cavalo sacrifical, cujo corpo contém todo o universo, é tratado da mesma forma que um poeta cristão trataria o Cordeiro de Deus. Também entre os pássaros a pomba tem representado tradicionalmente a concórdia universal ou amor, tanto de Vênus como do Espírito Santo cristão. As identificações de deuses com animais ou plantas e destes com a sociedade humana formam a base do simbolismo totêmico. Certos tipos de conto popular etiológico, as estórias de como seres sobrenaturais se transformaram nos animais e nas plantas que conhecemos, representam uma forma atenuada do mesmo tipo de metáfora, e sobrevivem como o arquétipo da "metamorfose", familiar em razão de Ovídio."

FRYE, Northrop - Anatomia da Crítica.

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