terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A igualdade não pode existir em lugar nenhum


Baixe o livro - A Crise do Mundo Moderno - René Guénon

"Como foi dito há pouco, já ninguém se encontra, no presente estado do Mundo ocidental, no lugar que lhe convém normalmente em virtude da sua própria natureza. É isso que exprimimos ao dizer que as castas já não existem, porque a casta, entendida no seu verdadeiro sentido tradicional, é simplesmente a própria natureza individual, com todo o conjunto das aptidões especiais que ela comporta e que predispõem cada homem ao cumprimento desta ou daquela função determinada. Como o acesso a certas funções já não se encontra submetido a qualquer regra legítima, daí resulta, inevitavelmente, que cada um será levado a fazer seja o que for e, muitas vezes, precisamente aquilo para o que se encontra menos qualificado. O papel que desempenhará na sociedade será determinado não pelo acaso, que na realidade não existe, mas pelo que pode dar a ilusão do acaso, ou seja, pela confusão de todas as espécies de circunstâncias acidentais. O que intervirá menos aí será precisamente o único fator que deveria contar em semelhante caso, isto é, as diferenças de natureza que existem entre os homens. A causa de toda esta desordem é a negação dessas mesmas diferenças, arrastando consigo a de toda a hierarquia social. Tal negação foi, a princípio, talvez pouco consciente e mais prática que teórica, porque a confusão das castas precedeu a sua supressão completa ou, por outras palavras, desprezou-se a natureza dos indivíduos antes de se chegar a ponto de não fazer qualquer caso dela. Mais tarde, no entanto, ela foi erigida pelos modernos em pseudo-princípio sob nome de “igualdade”.

Seria muito fácil mostrar que a igualdade não pode existir em lugar nenhum, pela simples razão de que não poderia haver dois seres que fossem ao mesmo tempo realmente distintos e inteiramente semelhantes entre si sob todos os aspectos. Seria fácil também salientar todas as conseqüências absurdas que decorrem dessa idéia quimérica, em nome da qual se pretende impor por toda parte uma completa uniformidade, por exemplo distribuindo a todos ensino idêntico, como se todos fossem igualmente aptos a compreender as mesmas coisas e como se para as fazer compreender os mesmos métodos conviessem a todos indistintamente. Pode-se, aliás, perguntar se não se trata mais de “aprender” do que de “compreender” realmente, ou seja, se a memória não é substituta da inteligência na concepção inteiramente verbal e “livresca” do ensino atual, em que se visa apenas a acumulação de noções rudimentares e heteróclitas, e em que a qualidade é inteiramente sacrificada à quantidade, tal como se produz por toda a parte, no Mundo Moderno, por razões que explicarei mais completamente a seguir: é sempre a dispersão na multiplicidade.

Haveria, a este respeito, muitas coisas a dizer acerca dos malefícios do “ensino obrigatório”; mas este não é o lugar para insistir nesse aspecto, e, para não sair do quadro traçado, contento-me em assinalar de passagem essa conseqüência especial das teorias “igualitárias”, como um dos numerosos elementos de desordem atuais.

Naturalmente, quando nos encontramos em presença de uma idéia como a de “igualdade” ou como a de “progresso”, ou como os outros “dogmas laicos” que quase todos os nossos contemporâneos aceitam cegamente, e a maior parte dos quais começou a se formular claramente no decorrer do século 18, não nos é possível admitir que tais idéias tenham nascido espontaneamente. Tratase de verdadeiras “sugestões” no sentido mais estrito desta palavra, que, aliás, não podiam produzir o seu efeito senão num meio já preparado para recebê-las; elas não criaram inteiramente o estado de espírito que caracteriza a época moderna, mas contribuíram largamente para o criar e desenvolver até um ponto que sem dúvida não teria alcançado sem elas. Se estas sugestões desaparecessem, a mentalidade geral estaria muito perto de mudar de orientação; é por isso que elas são tão cuidadosamente sustentadas por todos aqueles que têm qualquer interesse em manter a desordem, senão em agravá-la ainda mais, e é também a razão pela qual, numa época em que se pretende submeter tudo à discussão, elas são as únicas coisas que nunca é permitido discutir. É, aliás, difícil determinar exatamente o grau de sinceridade daqueles que se fazem propagadores de semelhantes idéias, saber em que medida certos homens chegam a agarrar-se às suas próprias mentiras e a sugestionar-se a si próprios sugestionando os outros; e mesmo numa propaganda deste tipo aqueles que desempenham um papel de enganados são muitas vezes os melhores instrumentos, porque lhe dão uma convicção que os outros teriam alguma dificuldade em simular e que é facilmente contagiosa. Mas por detrás de tudo isso, e pelo menos na origem, é necessária uma ação muito mais consciente, uma direção que só pode provir de homens que sabem perfeitamente a que se referem as idéias que eles assim põem a circular. Falo de “idéias”, mas tal palavra só impropriamente pode ser aplicada neste caso, porque é bem evidente que não se trata de modo algum de idéias puras, nem mesmo de algo que pertença de perto ou de longe à ordem intelectual. Pode-se dizer que são idéias falsas, mas mais valeria ainda chamar-lhes “pseudo-idéias” destinadas principalmente a provocar reações sentimentais, o que é efetivamente o meio mais eficaz e mais fácil para agir sobre as massas.

Neste aspecto, a palavra tem, aliás, uma importância maior do que a noção que supostamente representa e, na sua maior parte, os “ídolos” modernos não passam de palavras, porque se produz neste caso esse singular fenômeno conhecido pelo nome de “verbalismo”, em que a sonoridade das palavras basta para dar a ilusão do pensamento. A influência que os oradores exercem sobre as multidões é particularmente característica sob este aspecto, e não há necessidade de estudá-la de muito perto para se dar conta que se trata de um processo de sugestão comparável ao dos hipnotizadores. Mas, sem estender mais estas considerações, voltemos às conseqüências que traz consigo a negação de toda verdadeira hierarquia e notemos que, no estado atual das coisas, não apenas um homem só cumpre a sua função própria em casos excepcionais e como por acidente – enquanto é o contrário que deveria normalmente ser a exceção –, mas ainda acontece que o mesmo homem seja chamado a exercer sucessivamente funções todas elas diferentes, como se ele pudesse mudar de aptidões à sua vontade."

René Guénon


Baixe o livro - A Crise do Mundo Moderno - René Guénon


Fonte: Philosophia Perennis

domingo, 27 de janeiro de 2008

Crítica Arquetípica: Teoria dos Mitos

"Quanto à sociedade humana, a metáfora de que somos todos membros de um corpo tem estruturado a maior parte da teoria política de Platão aos nossos dias. A afirmação de Milton de que "Uma Comunidade devia ser apenas como uma pessoa cristã, com um forte desenvolvimento e a estatura de um homem digno" pertence a uma versão cristianizada dessa metáfora, na qual, como na doutrina da Trindade, a asseveração metafórica completa "Cristo é Deus e Homem" é ortodoxa, e as afirmações arianas e docéticas em termos de comparação ou semelhança, condenadas como heresias. O Leviathan de Hobbes, com seu frontispício original pintando certa quantidade de homúnculos dentro do corpo de um gigante, também se liga, de certo modo, ao mesmo tipo de identificação. A República de Platão, onde o entendimento, a vontade e o desejo do indivíduo surgem como o rei-filósofo, os guardas e os artesãos do Estado, também se funda nessa metáfora, que de fato ainda usamos, sempre que nos referimos a um grupo ou reunião de seres humanos como a um "corpo".

No simbolismo sexual, naturalmente, é mais fácil usar a metáfora "uma só carne" com referência a dois corpos unidos no mesmo corpo pelo amor. The Extasie (O Êxtase) de Donne é um dos muitos poemas baseados nessa imagem, e o Phoenix and the Turtle (A Fênix e a Rola) joga bastante com o abuso cometido contra a razão por essa identidade. Os temas da lealdade, culto do herói, servidores fiéis, e semelhantes, empregam também tal metáfora.

Os mundos animal e vegetal identificam-se um com o outro, e também com os mundos divino e humano, na doutrina cristã da transubstanciação, na qual as formas humanas essenciais do mundo vegetal, a comida e a bebida, a colheita e a vindima, o pão e o vinho, são o corpo e o sangue do Cordeiro, que é também Homem e Deus, e em cujo corpo existimos como numa cidade ou num templo. Ainda aqui a doutrina ortodoxa insiste na metáfora por oposição ao símile, e ainda aqui o conceito de substância ilustra as lutas da Lógica a fim de assimilar a metáfora. Transparece do início das Leis que o simpósio tinha algo do mesmo simbolismo comunial para Platão. Seria difícil encontrar uma imagem mais simples ou mais vívida da civilização humana: nela o homem tenta fechar a natureza e pô-la dentro de seu corpo (social), em vez da refeição sacramental.

As honras convencionais concedidas à ovelha no mundo animal fornecem-nos o arquétipo básico das imagens pastorais, e também metáforas como "pastor" e "rebanho" na religião. A metáfora do rei como pastor de seu povo remonta ao antigo Egito. Talvez o emprego dessa convenção específica seja devida ao fato de que, por estúpidas, meigas, gregárias e facilmente marcadas, as sociedades formadas pelas ovelhas são muito semelhantes às humanas. Mas naturalmente qualquer outro animal seria útil em poesia, se a audiência do poeta estivesse preparada para ele: no início do Brihadaranyaka Upanishad, por exemplo, o cavalo sacrifical, cujo corpo contém todo o universo, é tratado da mesma forma que um poeta cristão trataria o Cordeiro de Deus. Também entre os pássaros a pomba tem representado tradicionalmente a concórdia universal ou amor, tanto de Vênus como do Espírito Santo cristão. As identificações de deuses com animais ou plantas e destes com a sociedade humana formam a base do simbolismo totêmico. Certos tipos de conto popular etiológico, as estórias de como seres sobrenaturais se transformaram nos animais e nas plantas que conhecemos, representam uma forma atenuada do mesmo tipo de metáfora, e sobrevivem como o arquétipo da "metamorfose", familiar em razão de Ovídio."

FRYE, Northrop - Anatomia da Crítica.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Análise do marxismo

"A ingenuidade dialéctica de certos marxistas se manifesta em raciocínios como este:

A é operário, é a afirmação, é a tese. B é o patrão, o capitalista, a antítese. Mas A é inseparável de B, e B inseparável de A, pois são as relações entre ambos, A e B, que formam A e B. A pessoa de A está fundida em B, de forma que B, nesse momento, passa a ser negação de B que era negação, e porque afirma A, passa portanto a ser negação da negação. A leitura do Organon de Aristóteles esclareceria bem tais aspectos dos chamados contrários correlativos.

Marx jamais raciocinaria assim. É da fatalidade de certos mestres certos discípulos...

Se os marxistas meditassem mais sobre as diversas contribuições dialécticas, vindas de outras origens, evitariam certos erros interpretativos da história que os tornaram os mais acabados profetas malogrados dos factos. Quem se debruça sobre o pensamento socialista, desde logo observa que os marxistas, apesar de toda a sua convicção de verdade, foram, na crítica, constantemente errados. Leiam-se as obras de Lenine, Marx e Engels, etc., e verificar-se-á, nelas, o número exagerado de vezes em que se lêem palavras como estas: "nessa época estávamos errados..."

Mário Ferreira dos Santos - Lógica e Dialéctica

sábado, 19 de janeiro de 2008

O que os “estudos provam” é, geralmente, qualquer coisa desejada por aqueles que fizeram o estudo.

"Estudos provam que....": Parte I
por Thomas Sowell em 21 de agosto de 2006


© 2006 MidiaSemMascara.org

"Todas as vezes que eu ouço a frase “estudos provam” isso ou aquilo me lembro do início de minha carreira como economista no Ministério do Trabalho, em Washington.

O ministro do trabalho Arthur Goldberg ia comparecer perante o Congresso para defender uma determinada política de seu ministério e tentar transformá-la em lei. Na parte inferior da hierarquia, me apresentaram quatro conjuntos de dados, ainda não publicados, e me pediram para elaborar um relatório, a ser enviado ao ministro, analisando-os.

Dois dos conjuntos de dados pareciam apoiar a posição do ministério, mas os outros dois pareciam contrariá-la. Quando escrevi o parecer explicando essas coisas e dizendo que, no geral, os dados eram inconclusivos, houve muito desânimo em toda a hierarquia que me separava do ministro.

Eles ficaram também surpresos com o fato de alguém escrever tais coisas mesmo sabendo qual a posição do ministério sobre a questão. Eles pegaram meu relatório, editaram-no e o reescreveram antes de encaminhá-lo às camadas superiores de comando."

Continue lendo no site: Mídia Sem Máscara


"Estudos provam que....": Parte I
“Estudos provam que...” : Parte II
"Estudos provam que....": Final

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Contra o culto do método científico


Baixe o livro: Contra o Método - Paul Feyerabend

"É possível, naturalmente, simplificar o meio em que o cientista atua, através da simplificação de seus principais fatores. Afinal de contas, a história da ciência não consiste apenas de fatos e de conclusões retiradas dos fatos. Contém, a par disso, idéias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros, e assim por diante. Análise mais profunda mostra que a ciência não conhece ‘fatos nus’, pois os fatos de que tomamos conhecimento já são vistos sob certo ângulo, sendo, em conseqüência, essencialmente ideativos. Se assim é, a história da ciência será tão complexa, caótica, permeada de enganos e diversificada quanto o sejam as idéias que encerra; e essas idéias, por sua por sua vez, serão tão caóticas permeadas de enganos e diversificadas quanto as mentes dos que as inventaram. Inversamente, uma pequena lavagem cerebral muito fará no sentido de tornar a história da ciência mais insípida, mais simples, mais uniforme, mais ‘objetiva’ e mais facilmente accessível a tratamento por meio de regras imutáveis.

A educação científica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ciência, simplificando seus elementos: antes de tudo, define-se um campo de pesquisa; esse campo é desligado do resto da História (a Física, por exemplo, é separada da Metafísica e da Teologia) e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento completo, nesse tipo de ‘lógica’, leva ao condicionamento dos que trabalham no campo delimitado; isso torna mais uniformes as ações de tais pessoas, ao mesmo tempo em que congela grandes porções do procedimento histórico. ‘Fatos’ estáveis surgem e se mantêm, a despeito das vicissitudes da História. Parte essencial do treinamento, que faz com que fatos dessa espécie apareçam, consiste na tentativa de inibir intuições que possam implicar confusão de fronteiras. A religião da pessoa, por exemplo, ou sua metafísica ou seu senso de humor (seu senso de humor natural e não a jocosidade postiça e sempre desagradável que encontramos em profissões especializadas) devem manter-se inteiramente à parte de sua atividade científica. Sua imaginação vê-se restringida e até sua linguagem deixa de ser própria. E isso penetra a natureza dos ‘fatos’ científicos, que passam a ser vistos como independentes de opinião, de crença ou de formação cultural."


Baixe o livro: Contra o Método - Paul Feyerabend

Fonte: PDL

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Crítica literária

"Descobrimos que a teoria crítica dos gêneros parou precisamente onde Aristóteles deixou-a."

Northrop Frye - Anatomia da crítica (1957)

Faça-me rir

"Solicito aos governos do continente (latino-americano) que retirem as Farc e o ELN da lista de grupos terroristas do mundo; peço à Europa que retire as Farc e o ELN da lista de grupos terroristas do mundo porque essa lista tem uma única causa, a pressão dos Estados Unidos."

Hugo Chávez -
11/01/2008

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Reflexões sobre o progresso da verdadeira metafísica e particularmente sobre a natureza da substância explicada pela força

G. W. Leibniz
(1694)Fonte: GERHARDT, C.I. (org.) Die Philosophischen Schriften von Leibniz. 7 vols. Hildesheim: Olms. 1977


(1) Observo que muitas pessoas que têm satisfação com a ciência das matemáticas não possuem inclinação para meditações metafísicas; encontram esclarecimento em uma e escuridão em outra. A principal causa disso parece ser aquelas noções gerais que pensam conhecer tão bem, mas que se têm tornado ambíguas e obscuras em virtude da negligência e do modo inconsistente pelo qual essas pessoas se expressam. E as definições ordinárias longe de expressarem a natureza das coisas, nem mesmo expressam os significados (meanings) das palavras. Esse problema tem se expandido a outras disciplinas que estão subordinadas de vários modos a essa primeira ciência. Assim, em lugar de definições claras, temos dado distinções triviais e, em lugar de axiomas universais, temos apenas regras particulares que quase encontram tantas exceções quanto exemplos. Mas, simultaneamente, as pessoas são obrigadas a utilizar termos metafísicos todo o tempo e, ao crescerem, se convencem de que entendem as palavras que costumeiramente utilizam. Essas pessoas estão sempre falando sobre substância, acidente, causa, ação, relação ou ratio e diversos outros termos dos quais, contudo, ainda não formaram, de modo claro, os verdadeiros significados pois esses são ricos em excelentes verdades, ao passo que são estéreis aqueles outros que lhes temos dado. Esta é a razão pela qual não nos deveríamos surpreender que essa primeira ciência, que é denominada “filosofia primeira” e que Aristóteles qualificou de “ciência que estamos procurando”, ainda está para ser averiguada.

(2) Platão está freqüentemente interessado, em seus diálogos, em investigar a riqueza dessas noções enquanto Aristóteles faz o mesmo nos livros da Metafísica. Contudo, parece que não obtiveram progresso. Já os neoplatônicos, falavam de um modo tão misterioso que acabaram sendo levados à absurdidade; e os escolásticos encontravam-se mais interessados em levantar questões que em respondê-las: deveriam ter o auxílio de um Gellius, aquele magistrado romano que, segundo Cícero, chegou a oferecer seus serviços aos filósofos de Atenas na esperança de resolver as suas disputas por meio de algo semelhante a um processo judicial. Em nossa própria época, muitos excelentes homens têm ampliado seus interesses pela metafísica mas, até agora, sem grande sucesso. Deve-se admitir, ainda assim, que o senhor Descartes realizou algo de importante aqui: ele restaurou os esforços de Platão em livrar a mente de sua escravidão aos sentidos e o fez utilizando-se das dúvidas dos céticos da última Academia. Mas tendo sido tão precipitado em suas afirmações e não tendo distinguido suficientemente bem a certeza da incerteza, ele não alcançou seu propósito. Possuía ele uma idéia errada da natureza do corpo que, sem prova, entendia como sendo extensão pura e não pôde entender de modo algum a união da alma com o corpo. Isso se deve à não compreensão da natureza da substância em geral; ele como que passa bruscamente ao exame de difíceis questões sem ter explicado as partes que as compõem. A natureza dúbia de suas Meditações não poderia ser entendida mais claramente do modo como está em uma pequena obra na qual tenta, a pedido do padre Mersenne, condensá-las em forma de demonstrações. A obra está incluída em meio às suas Réplicas às Objeções (CSMK II, 92, 113 ss).

(3) Há outros homens que têm tido algumas profundas reflexões. Mas falta-lhes clareza; que é, todavia, ainda mais necessária aqui que nas matemáticas. Nestas, as verdades trazem consigo as suas provas e é o fato de que podemos sempre examiná-las que lhes tem dado tanta certeza. Esse é o motivo pelo qual a metafísica, carecendo de tais provas, necessita de um novo modo de tratamento das coisas; algo que irá substituir a conjectura; algo que servirá como um fio de Ariadne através do labirinto e que conterá acessibilidade comparável àquela encontrada no modo de falar mais popular.

(4) A importância dessas investigações será vista no que temos a dizer acerca da noção de substância. A idéia que tenho dela é tão preciosa que dela resultam muitas das mais importantes verdades a respeito de Deus, da alma e da natureza do corpo e que são geralmente não só desconhecidas como não provadas. Para esclarecer essa noção, aqui direi que a reflexão sobre o conceito de força (à qual atribuí uma ciência especial que pode ser denominada Dinâmica) é de grande auxílio para a compreensão da natureza da substância. Essa força ativa é diferente da faculdade dos escolásticos, que consiste apenas em uma possibilidade aproximada de ação e que nela mesma está morta, por assim dizer, e inativa, a menos que seja excitada por algo exterior a ela. Mas a força ativa envolve uma enteléquia, ou uma atividade; está a meio caminho entre uma faculdade e uma ação, além de conter em si mesma um certo esforço ou conatus. É levada à ação por si mesma sem qualquer necessidade de auxílio, desde que nada a impeça. Tudo isso pode ser esclarecido pelo exemplo de um corpo pesado suspenso ou por um arco flexionado; pois embora seja verdadeiro que a força peso e a força elástica devam ser explicadas mecanicamente pelo movimento de matéria etérea, é, todavia, também verdadeiro que a razão última para o movimento da matéria é a força dada na criação, que existe em todos os corpos mas que de certo modo está constrangida pelas interações mútuas dos corpos. Sustento que esse poder de ação existe em todas as substâncias e que, de fato, sempre produz alguma atividade real e que um corpo por si mesmo jamais está perfeitamente em repouso – o que está em desacordo com a idéia daqueles que vêem o corpo como extensão, unicamente. Também será visto destas meditações, que uma substância jamais recebe sua força de uma outra substância criada; o que de lá provém é tão somente o constrangimento ou determinação que dá origem à força secundária ou o que é denominado força movente e que não deve ser confundida com aquilo que determinados autores denominam impetus, que avaliam pela quantidade de movimento e tornam proporcional à velocidade, quando os corpos são idênticos. Ao contrário, a força movente, que é absoluta e vital, ou seja, aquela que é sempre conservada, é proporcional aos possíveis efeitos que dela se originam (ver Discurso de Metafísica § 17 e Ensaio de Dinâmica §§ 25-26). Isso é onde os cartesianos estavam enganados ao pensarem que a mesma quantidade de movimento é conservada nos encontros entre os corpos. E noto que o senhor Huygens concorda comigo neste ponto, em conformidade com o que afirmou, há tempos, em Histoire des ouvrages des savants: que a mesma força de elevação é sempre conservada.

(5) Finalmente, um dos pontos mais importantes a ser esclarecido por essas meditações é aquele acerca da comunicação entre as substâncias e da união entre a alma e o corpo. Espero que esse grande problema seja de tal modo resolvido, e de maneira clara, que sirva por si mesma como uma prova de que encontramos a chave para parte dessas questões. Não penso que haja qualquer maneira de dar uma explicação alternativa sem referência a uma extraordinária congregação da causa primeira com os costumeiros mecanismos das causas secundárias. Porém, falarei mais a esse respeito em outra oportunidade...


Fonte: Leibniz Brasil

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

A ecologia e seus riscos

A ecologia e seus riscos
Miguel Reale
Estado de SP, 23/6/01

"São tão complexas e variegadas as razões determinantes do processo histórico que têm sido consideradas parciais ou insuficientes todas as teorias que têm procurado explicar o decurso das civilizações ao longo do tempo.

Poder-se-ia dizer que cada uma delas revela uma nota distintiva da História, desde as otimistas visões unitárias até as interpretações pessimistas que lhe negam qualquer linha de continuidade. Mais perto de uma solução razoável me parecem os pensadores que nos falam em "corsi e ricorsi" (idas e vindas) da História, como o fez Giambattista Vico, o que corresponde às "surgências e insurgências" lembradas por Gilberto Freyre; ou, então, sob outro prisma, aqueles que se referem à "astúcia da razão na História", à moda de Hegel, ou, então, aos fatores da sorte ou "fortuna", como pensava Nicolò Machiavelli, ponto de vista em parte coincidente com a idéia do "acaso" no pensamento de Jacques Monod, sem esquecer o dito popular brasileiro, enaltecido por Alceu de Amoroso Lima, de que "Deus escreve direito por linhas tortas".

De uns tempos para cá, todavia, sob a influência dos estudos de Axiologia, ou Teoria dos Valores, tem-se reconhecido que, não obstante os "contrastes e confrontos", de que tratou Euclides da Cunha, há certos valores que na vida humana adquirem maior consistência e durabilidade. Como tenho escrito ultimamente, penso mesmo que se pode aceitar a existência de "invariantes axiológicas", ou seja, de valores tão constantes que até parecem inatos, como que renovando as concepções idealistas que remontam aos arquétipos de Platão, referência perene da filosofia.

Não se trata, porém, de idéias transcendentes, mas sim de criações históricas que vão compondo o acervo de nossa experiência cultural, merecendo primordial realce o valor da pessoa humana, a meu ver o "valor fonte de todos os valores". Outros há como, por exemplo, os da liberdade, da igualdade (isonomia), da justiça, do bem comum, da privacidade, os quais, no fundo, assinalam progressivas conquistas da ética.

Pois bem, o último desses valores dotados de força imperativa e constante é o ecológico, isto é, o relativo ao valor da natureza em geral e do "meio ambiente" em particualr, adquirindo tal força que por toda parte do mundo surgem "partidos verdes" disputando o poder político.

Compreende-se essa dedicação, pois, em verdade, o progresso tecnológico, sob várias de suas formas, ameaça destruir a natureza. Nesse ponto houve uma inversão de 180 graus, pois, há menos de meio século, a natureza era considerada expressão máxima de estabilidade e segurança, a tal ponto que para muitos o Direito Natural seria a base inamovível da legislação. Agora, ao se perceber que "a natureza morre", apela-se para a lei para salvá-la...

Não há dúvida, por conseguinte, que tudo deve ser feito para preservar os recursos naturais, merecendo louvor iniciativas como a que recentemente criou, na capital paulistana, a Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos.

Reconhecido e proclamado o valor fundamental da natureza, não devemos, todavia, exagerar até o ponto de nos perdermos no "fundamentalismo ecológico", que acaba pondo em risco o bem-estar dos indivíduos e da coletividade.

É preciso, antes de mais nada, reconhecer que não se protege a natureza em si mesma e por si mesma, mas sim enquanto ela constitui o valor condicionante por excelência da vida humana, o que quer dizer que a ecologia se subordina à antropologia, às exigências vitais do ser humano.

Desse modo, quando, para aproveitamento das forças naturais, como, por exemplo, dos potenciais hidráulicos, é necessário destruir parte de uma floresta, não pode de antemão prevalecer uma atitude de absoluta condenação, sendo imprescindível proceder-se a um balanceamento de valores, levando em conta não apenas o altíssimo valor econômico-social da obra projetada, mas também a possibilidade que hoje temos de preservar a fauna e a flora ameaçadas, tal como foi feito em Itaipu, com resultados exemplares. Por sinal que, se na época da construção daquela usina binacional primassem certos credos ambientalistas que há por aí, não teria sido possível construí-la, por se ter de sacrificar o salto de Sete Quedas, submerso pelo imenso reservatório. Mas, se tal fator tivesse ocorrido, que seria do Brasil na imensa crise energética que atualmente nos apavora?

Casos como esse devem ser analisados com serena objetividade, sem fanatismos perigosos, para que as decisões obedeçam a critérios superiores que tenham em vista a melhoria das condições da vida humana.

Infelizmente, não é o que tem acontecido. Para nos limitarmos à questão candente de geração de energia elétrica, bastaria lembrar os casos focalizados pela revista Veja de 6 de junho último, como o da suspensão judicial da construção de uma usina termoelétrica em Cuiabá, por se alegar que sua tubulação de gás iria atravessar uma caverna considerada essencial ao meio ambiente, sendo este também invocado para impedir a construção pela Votorantim de uma hidrelétrica no Vale do Ribeira, fato que se repete quanto à implantação de uma usina, movida a gás natural, em Cubatão. Nem se deve esquecer que, para salvar pequeno trecho de floresta, se impediu uma linha de transmissão que nos podia trazer energia da Argentina.

Tudo isso demonstra que novos critérios devem nortear as decisões do Ministério Público e da Justiça, em se tratando de proteção do meio ambiente, evitando-se que elas redundem em prejuízo para a coletividade nacional.

Não podemos esquecer que a poderosa economia, que logramos constituir, importou em contínuo aproveitamento de bens naturais, à custa de outros de caráter instrumental. Não há dúvida que em muitos casos houve abusos condenáveis, que não se devem repetir, mas, se prevalecessem as exageradas pregações ambientalistas hoje acolhidas, o Brasil teria permanecido contemplando as belezas do litoral, sem sequer dobrar as linhas do Tratado de Tordesilhas... "

Reale, M. (2001, 23 de junho). A ecologia e seus riscos. O Estado de São Paulo, São Paulo.


Fonte: Pensadores Brasileiros

sábado, 5 de janeiro de 2008

O mundo que venci deu-me um amor

"O mundo que eu venci deu-me um amor,

Um troféu perigoso, este cavalo

Carregado de infantes couraçados.

O mundo que venci deu-me um amor

Alado galopando em céus irados,

Por cima de qualquer muro de credo.

Por cima de qualquer fosso de sexo.

O mundo que venci deu-me um amor

Amor feito de insulto e pranto e riso,

Amor que força as portas dos infernos,

Amor que galga o cume ao paraíso.

Amor que dorme e treme. Que desperta

E torna contra mim, e me devora

E me rumina em cantos de vitória... "


Mário Faustino - (1930-1962)


Fonte: Antonio Miranda

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O Efeito da Decisão Sobre a Ação Futura

"Numerosos estudos têm sido relatados na literatura psicológica em que lições ou instrução individual são comparadas com a decisão de grupo em termos de sua eficácia na produção de alguma mudança no comportamento. Esses estudos são sumariados por Lewin. Mostram geralmente que, depois de uma decisão de grupo, há mais mudança de comportamento do que depois de uma lição persuasiva.

Embora esses estudos sejam bastante conhecidos, vale a pena recapitular brevemente um deles para mostrar os detalhes do procedimento comumente empregado nesses estudos e para ilustrar os efeitos que estão envolvidos. Num estudo, que fazia parte de um programa de pesquisa sobre a mudança de hábitos alimentares durante a II Guerra Mundial, tentou-se persuadir as donas-de-casa a aumentarem o uso de carnes glandulares. Foram utilizados seis grupos de mulheres no estudo. Em três deles, foi dada uma lição informativa e persuasiva sobre a matéria, acompanhada pela distribuição de receitas. Um estudo de acompanhamento (realizado uma semana depois) determinou que apenas 3% das mulheres desses três grupos tinham acatado a lição e servido carne glandular que jamais haviam comprado antes.
Em vez de uma lição, aproximadamente a mesma informação foi propiciada aos outros três grupos durante uma discussão de grupo sobre o assunto. Além disso, no final da reunião, pediu-se às mulheres que indicassem, levantando as mãos, quem serviria à sua família um dos tipos de carne que nunca haviam servido antes. O estudo de acompanhamento indicou que, desses grupos, 32% das mulheres serviram realmente uma nova carne glandular. A diferença obtida entre as condições é bastante impressionante. Outros estudos, que usaram diferentes tipos de grupos e diferentes espécies de "ação a ser empreendida", apresentaram resultados comparáveis.

Examinemos esses resultados do ponto de vista da teoria da dissonância. Naqueles grupos em que nenhuma decisão foi solicitada, algumas pessoas podem ter sido suficientemente persuadidas pela lição e fizeram o que lhes fora recomendado. No estudo brevemente recapitulado, a ação consistia em servir carnes glandulares e cerca de 3% das mulheres foram persuadidas pela lição a servi-las. Contudo, nos grupos que foram induzidos a tomar uma decisão, pode ter sido criada dissonância por essa decisão. O conhecimento de que elas ou seus maridos não gostariam de carnes glandulares, por exemplo, seria dissonante com a ação que empreenderam ao decidirem servir tal carne. As pressões para reduzir essa dissonância surgiriam então e, na medida em que fossem bem sucedidas em reduzi-la, poder-se-ia esperar que as mulheres se convencessem a si mesmas e umas às outras de que talvez seus maridos gostassem, no fim de contas, de provar esse tipo de carne. Uma vez mudada a cognição dessa maneira, o fato de muitas terem decidido ir em frente e servido realmente carnes glandulares não constitui surpresa. Por outras palavras, o efeito sobre a ação seria uma conseqüência da redução bem sucedida da dissonância pós-decisória.

Embora seja possível explicar os resultados desses estudos de decisão de grupo em termos da redução da dissonância pós-decisória, não podemos esquecer que são possíveis muitas outras explicações. Os estudos sobre decisão de grupo são em grande parte incontroladas, com muitos fatores variando simultaneamente. Por isso não podem ser considerados como fornecedores de boas provas em apoio à teoria da dissonância. A coisa importante a ser sublinhada, entretanto, é que os resultados são compatíveis com as implicações da teoria da dissonância; e o que é mais, se esses resultados são uma conseqüência da redução de dissonância, outras implicações se seguem também. Por exemplo, a teoria da dissonância implicaria que o mesmo tipo de efeito ocorrerá, quer a decisão seja tomada publicamente num grupo ou por um indivíduo isolado, quer se siga a uma discussão ou a uma aula. A questão importante é que uma decisão foi tomada e que dela resultou dissonância, não se houve ou deixou de haver uma discussão de grupo antes da decisão ou se esta foi pública ou particular."

Festinger, L. (1957). Theory of Cognitive Dissonance. Stanford: Stanford
University Press