quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Estética e arte moderna

"Um dos sectores, onde mais se acentua a crise actual, é no da Estética e das realizações artísticas. Uma investigação histórica da arte, para considerá-la em sua concreção, deve visualiza-lá, não só como uma expressão da catharsis humana, isto é, a exteriorização da emoção do artista, como também da alma da cultura à qual pertence, tendendo, sobretudo, a expressar um pensamento místico e simbólico.

A arte egípcia do antigo Império ou a arte hindu revelam o simbólico com uma evidência meridiana. O mesmo pode dizer-se da arte chinesa, da arte árabe, que não é apenas decorativa, como se costuma dizer, e recuando mais distante, a arte dos povos chamados primitivos revela sempre êsse sentido simbólico e, conseqüentemente, místico.

Dizemos místico, porque o mistério é o que se oculta, e o símbolo, referindo-se sempre a um simbolizado, é êle, enquanto tal, outro que o simbolizado ao qual se refere.

Quem compreende o significado do símbolo, sabe que êle aponta a um referido que se oculta. Eis por que a simbólica é sempre uma via mística, pois, busca a verdade do que se cala (myô, eu calo).

Mas apesar dêsse sector marcante em tôdas as culturas, há sempre, em tôda a arte, a presença da realidade histórico-social. Por isso, há nela algo da realidade, além da expressão da alma do artista, formando êsses três elementos a estructura concreta e histórica de qualquer manifestação estética.

Se atentarmos para o Ocidente, veremos que a arte, eminentemente mística, surgida nos diversos períodos do cristianismo, torna-se acentuadamente profana, quando a unidade religiosa entra em crise. Assim, o Renascimento já nos revela a predominância do profano, mesmo quando se trate de temas religiosos.

Vê-se, assim, que a diácrise se processa na arte, no período do Renascimento, mais acentuada do que em outros anteriores. Na chamada "arte moderna", do classicismo para cá, essa diácrise é mais evidente.

O chamado movimento clássico foi apenas uma tentativa de manter a unidade, a sincrise dos valôres eminentemente objectivos e técnicos, que haviam alcançado os pontos eminentes, durante o processo artístico, não só greco-romano, como também fáustico. Dessa forma, o classicismo era uma síncrise que não evitava, nem podia evitar totalmente a diácrise em processo de expansão, e tendia a agravar-se.

O ideal clássico de manter e conservar os valôres mais altos encerrava a arte dentro de cânones objectivos, e não poderia resistir à catharsis, à manifestação emocional do artista, que já vivia a crise agravada pelas condições histórico-sociais.

Portanto, não era de admirar que a arte moderna fôsse uma arte diacrítica, em que valôres, tomados isoladamente, passassem, não só a predominar na unidade da ordem estética, como até a tornarem-se excludentes de outros valôres.

Se uma obra de arte era decorativa também, o decorativismo vai apenas actualizar êsse valor, esquecendo de harmonizá-lo com os outros.

Todos os ismos, que surgiram nestes dois últimos séculos, foram uma manifestação da diácrise, uma separação dos valores estéticos, e, consequentemente, o artista tem sido, nesta época, um símbolo da crise que eminentemente se agrava em nossos dias.

Aquêles que julgam que a arte moderna é uma antecipação do futuro têm uma visão errônea dos factos, porque, na verdade, o artista apenas tem vivido o momento de agravamento da crise, ou, quando muito, o futuro próximo, ainda dentro do campo da diácrise, sem, na verdade, ter oferecido nenhuma solução estética ao problema que aflige tão intensamente o homem actual.

Ao assistirmos uma exposição de arte moderna, sentimos crescer em nós angústias, que nos avassalam, e não encontramos, nessa arte, uma compensação à grave situação diacrítica de nossos dias.

É, portanto, facilmente compreensível, que os que se dedicam ao estudo da estética estejam imersos na maior confusão, e a heterogeneidade de pontos de vista seja tão imensa que, dificilmente, dois críticos actuais poderão encontrar-se num campo comum. A própria crítica se desmerece constantemente, devido aos excessos de aplausos aos que correspondem ao ponto de vista de críticos, ou excessos de reprovação à obra por êles não sentida nem entendida.

Conseqüentemente, as incompreensões aumentam, e não se pode esperar, para tão cedo, que os artistas penetrem num caminho em que a arte corresponde directamente ao sentir da humanidade, como sucedeu em outros períodos históricos. Pode-se dizer, sem exagêro, que a arte moderna é uma arte totalmente divorciada da alma da cultura, porque esta já cessou de realizar o maior, e apenas vive dos productos que ela gerou nos seus períodos mais altos.

Muitos costumam dizer que o artista é um profeta. E há algo de verdadeiro nessa afirmação. O excesso de abstractismo na arte moderna corresponde aos excessos de abstractismo em outros sectorês, o que, por sua vez, é uma manifestação da diácrise. Nesse caso, o artista moderno profetiza o futuro próximo da total decadência em que vivemos, que é o agravamento exagerado dos abismos, interpostos entre os elementos componentes da nossa cultura, cujos excessos são explorados cada dia mais intensamente, e provocam o movimento da síncrise, que se impõe, aspirado por todos, e que um dia, depois das grandes comoções por que passará a sociedade, abrirá caminho para uma nova era que será fatalmente de universalidade, ecumênica. E êsse momento surgirá quando os homens, que construirão os fundamentos da nova cultura, tenham encontrado aquêle ponto de unificação, cujas características formais desejamos analisar, ao entrarmos no capítulo final desta obra."

Mário Ferreira dos Santos - Filosofia da Crise

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