"Com a queda súbita do muro de Berlim e a debacle irreparável do chamado "socialismo real", é compreensível que os esquerdistas tenham caído em orfandade, pois, até então se abrigavam na fortaleza do marxismo, o qual, no dizer de Raymond Aron, foi, durante quase meio século, o "ópio dos intelectuais".
Houve um primeiro momento de perplexidade e mesmo de desespero, mas, como é natural, os ex-adoradores de Marx passaram logo a rever suas posições, procurando novos refúgios para suas pretensões e atividades, recorrendo, se possível, a novas ideologias.
Nesse sentido, duas vias foram preferidas. A mais importante delas, e a mais consciente e honesta, foi propiciada pelos exageros do neoliberalismo, cujos adeptos, não contentes com a verificação de que o capitalismo era uma "realidade" perante a "ilusão" marxista, pretenderam não só minimizar a competência dos Estados nacionais, mas também reduzir toda a ação política aos problemas econômico-financeiros, com o olvido dos valores sociais, até o ponto de julgarem a justiça social uma expressão "meaningless", ou seja, desprovida de sentido.
Foi mérito, primeiro, dos trabalhistas britânicos de Tony Blair e, depois, dos socialistas franceses de Lionel Jospin assumir uma posição de equilíbrio, reconhecendo, de um lado, a vitória irretorquível de dois valores do liberalismo - o da livre iniciativa como fator primordial do desenvolvimento, e a falência do Estado como empresário - e, de outro, a necessidade de infundir socialidade nas artérias da economia liberal. Essas opções já vinham, em última análise, coincidir com a tese já levantada pelos defensores do "social-liberalismo", segundo o qual não é possível deixar o destino do homem e da sociedade entregue aos dados do mercado, isto é, à livre e incontrolada competição dos interesses individuais, tida ilusoriamente como fonte perene de bem-estar social.
Pois bem, se as forças mais responsáveis da esquerda souberam fazer sua necessária autocrítica, firmando novas bases de ação política, o esquerdismo irresponsável preferiu optar por soluções demagógicas, graças à utilização tática de algumas idéias em vigor, suscetíveis de exploração fácil e atraente.
Essa idéias convertidas em fulcro das atividades políticas e proclamadas como sendo as únicas representativas da cultura e da dignidade humana são, principalmente, a ecológica, ou da defesa do meio ambiente; a do anti-racismo, ou a luta pela igualdade étnica; e a da igualdade total dos sexos, visando sobretudo o reconhecimento dos direitos iguais dos gays.
É claro que ninguém há que não reconheça o que há de procedente em cada um desses movimentos, mas uma coisa é reconhecer a legitimidade dos valores em que se baseiam, e outra coisa é pretender convertê-los, demagogicamente, em objetos únicos da vida individual e coletiva. Quando um valor é exacerbado, até o ponto de tudo ser reduzido a seus parâmetros, está aberto o campo para o extremismo ideológico, com perda do senso de sereno equilíbrio que nos deve orientar para sabermos o que é ou não lícito defender com plena liberdade.
O certo é que a ideologização dos três valores acima discriminados, sempre com a malícia e a irresponsabilidade próprias da "esquerda festiva", já está ameaçando, também no Brasil, a causa da liberdade, sem a qual nenhum valor subsiste, visto tornar-se impossível a sua natural ou espontânea realização, em prejuízo da democracia, a qual não se compreende sem o convívio de idéias divergentes ou contrárias.
Foi o que aconteceu, há poucos dias, em lamentável episódio ocorrido na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, onde três estudantes foram covardemente espancados a pretexto de racismo, somente por terem publicado um jornal com o título de O Indivíduo, em reação contra certas pregações coletivistas com que se procura mascarar o renitente esquerdismo marxista.
O pior é que os dirigentes da PUC não titubearam em apoiar os agressores, somente para parecerem libertos de preconceitos conservadores ou arcaicos, ganhando o aplauso dos mais fortes ou numerosos, que se autoproclamam senhores da verdade. Não é a primeira vez que a PUC do Rio de Janeiro é vítima do que costumo denominar "complexo de Torquemada", isto é, da má consciência que alguns católicos têm em razão de conhecidos abusos perpetrados, no passado, pela Igreja contra a liberdade de pensamento, fatos esses que de resto devem ser objetivamente apreciados em razão dos valores culturais dominantes na época histórica, ainda que insuscetíveis de plena justificação.
É necessário, pois, que os homens de responsabilidade tomem posição imediata contra certas atitudes de violento inconformismo que estão surgindo no País, a pretexto de novas reivindicações ideológicas, exigindo que se contraponham idéias contra idéias, e não o uso da força bruta contra convicções que nos pareçam insustentáveis. Sem tolerância, em suma, não há democracia, porque ela é o respaldo insubstituível da liberdade democrática."
Miguel Reale é jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras e
ex-reitor da USP.
Transcrito do JORNAL DA TARDE de 08 de dezembro de 1997.
Houve um primeiro momento de perplexidade e mesmo de desespero, mas, como é natural, os ex-adoradores de Marx passaram logo a rever suas posições, procurando novos refúgios para suas pretensões e atividades, recorrendo, se possível, a novas ideologias.
Nesse sentido, duas vias foram preferidas. A mais importante delas, e a mais consciente e honesta, foi propiciada pelos exageros do neoliberalismo, cujos adeptos, não contentes com a verificação de que o capitalismo era uma "realidade" perante a "ilusão" marxista, pretenderam não só minimizar a competência dos Estados nacionais, mas também reduzir toda a ação política aos problemas econômico-financeiros, com o olvido dos valores sociais, até o ponto de julgarem a justiça social uma expressão "meaningless", ou seja, desprovida de sentido.
Foi mérito, primeiro, dos trabalhistas britânicos de Tony Blair e, depois, dos socialistas franceses de Lionel Jospin assumir uma posição de equilíbrio, reconhecendo, de um lado, a vitória irretorquível de dois valores do liberalismo - o da livre iniciativa como fator primordial do desenvolvimento, e a falência do Estado como empresário - e, de outro, a necessidade de infundir socialidade nas artérias da economia liberal. Essas opções já vinham, em última análise, coincidir com a tese já levantada pelos defensores do "social-liberalismo", segundo o qual não é possível deixar o destino do homem e da sociedade entregue aos dados do mercado, isto é, à livre e incontrolada competição dos interesses individuais, tida ilusoriamente como fonte perene de bem-estar social.
Pois bem, se as forças mais responsáveis da esquerda souberam fazer sua necessária autocrítica, firmando novas bases de ação política, o esquerdismo irresponsável preferiu optar por soluções demagógicas, graças à utilização tática de algumas idéias em vigor, suscetíveis de exploração fácil e atraente.
Essa idéias convertidas em fulcro das atividades políticas e proclamadas como sendo as únicas representativas da cultura e da dignidade humana são, principalmente, a ecológica, ou da defesa do meio ambiente; a do anti-racismo, ou a luta pela igualdade étnica; e a da igualdade total dos sexos, visando sobretudo o reconhecimento dos direitos iguais dos gays.
É claro que ninguém há que não reconheça o que há de procedente em cada um desses movimentos, mas uma coisa é reconhecer a legitimidade dos valores em que se baseiam, e outra coisa é pretender convertê-los, demagogicamente, em objetos únicos da vida individual e coletiva. Quando um valor é exacerbado, até o ponto de tudo ser reduzido a seus parâmetros, está aberto o campo para o extremismo ideológico, com perda do senso de sereno equilíbrio que nos deve orientar para sabermos o que é ou não lícito defender com plena liberdade.
O certo é que a ideologização dos três valores acima discriminados, sempre com a malícia e a irresponsabilidade próprias da "esquerda festiva", já está ameaçando, também no Brasil, a causa da liberdade, sem a qual nenhum valor subsiste, visto tornar-se impossível a sua natural ou espontânea realização, em prejuízo da democracia, a qual não se compreende sem o convívio de idéias divergentes ou contrárias.
Foi o que aconteceu, há poucos dias, em lamentável episódio ocorrido na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, onde três estudantes foram covardemente espancados a pretexto de racismo, somente por terem publicado um jornal com o título de O Indivíduo, em reação contra certas pregações coletivistas com que se procura mascarar o renitente esquerdismo marxista.
O pior é que os dirigentes da PUC não titubearam em apoiar os agressores, somente para parecerem libertos de preconceitos conservadores ou arcaicos, ganhando o aplauso dos mais fortes ou numerosos, que se autoproclamam senhores da verdade. Não é a primeira vez que a PUC do Rio de Janeiro é vítima do que costumo denominar "complexo de Torquemada", isto é, da má consciência que alguns católicos têm em razão de conhecidos abusos perpetrados, no passado, pela Igreja contra a liberdade de pensamento, fatos esses que de resto devem ser objetivamente apreciados em razão dos valores culturais dominantes na época histórica, ainda que insuscetíveis de plena justificação.
É necessário, pois, que os homens de responsabilidade tomem posição imediata contra certas atitudes de violento inconformismo que estão surgindo no País, a pretexto de novas reivindicações ideológicas, exigindo que se contraponham idéias contra idéias, e não o uso da força bruta contra convicções que nos pareçam insustentáveis. Sem tolerância, em suma, não há democracia, porque ela é o respaldo insubstituível da liberdade democrática."
Miguel Reale é jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras e
ex-reitor da USP.
Transcrito do JORNAL DA TARDE de 08 de dezembro de 1997.
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