sábado, 12 de fevereiro de 2011

A tipologia universal dos discursos

"Uma vez assentado que segundo Aristóteles os tipos fundamentais do discurso são quatro, resta perguntar se ele tem razão; se na verdade não são três, ou cinco, ou noventa, e se no seu arranjo recíproco não conviria antes dispô-los numa ordem diversa e segundo uma outra grade de relações; resta averiguar, em fim, quais argumentos podemos convocar em defesa da concepção aristotélica que não foram propostos – e talvez nem se quer antevistos pelo próprio Aristóteles. Resta demonstrar a necessidade lógica da hipótese dos quatro discursos de preferência entrando no tema por um lado diferente daquele por onde o aborda o Estagirita, de modo a evidenciar que por outras vias se chega ao mesmo resultado. E se existe uma abordagem que, inventado por Aristóteles, quase nunca é praticada por ele, é justamente a via analítico-demostrativa. Raciocinarei, portanto, à maneira de Spinoza, por pura dedução, more geometrico, mostrando que por este caminho se chega aos mesmos resultados que a filologia sugere pela interpretação dos textos e a dialética sustenta pela exclusão das hipóteses contrárias."

Olavo de Carvalho - Aristóteles em nova perspectiva - Introdução à teoria dos Quatro Discursos

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Tabacaria



"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa -  15-1-1928

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Desconstrucionismo e o problema do conceito de verdade

"O desconstrucionismo é o método filosófico por excelência dos pensadores posmodernos, ainda que seu inventor, o francês Jacques Derrida (n.1930), negue que se trate de um método. O desconstrucionismo é uma prática de leitura baseada em uma hermenêuticade suspeita em que o texto é entendido a partir da sua auto-desintegração teórica. A desconstrução implica na subversão, na descentralização de qualquer origem perceptível de discursos autoritativos associados à "metanarrativas", isto é, macroestruturas teóricas como, por exemplo, sistemas filosóficos e teológicos. As metanarrativas são desconstruídas através de uma "arqueologia do conhecimento" e de uma "tipologia dos discursos".

O posmodernismo rejeita e busca desconstruir qualquer noção de verdade que se proponha unitária, absoluta, universal, ou mesmo coerente. Entretanto, há muito tempo que a filosofia "desconstruiu" a noção clássica de verdade: o que temos hoje são diferentes teorias sobre a verdade, como o correspondentismo, o coerentismo, o verificacionismo, o pragmatismo de William James (1842-1910), o semanticismo de A.Tarski, etc. Martin Heidegger (1889-1976) dizia que a verdade como nós a entendemos é uma invenção dos gregos. A-letheia é descobrir aquilo que jaz oculto na memória (lethe = esquecimento), é lembrar-se daquilo que o burburinho das idéias e opiniões nos fez esquecer.

Mas desde os tempos de Platão o ser humano se esqueceu disso, e o pensamento ocidental passou a encarar a verdade como se fosse algo à nossa disposição. Portanto, propor uma redefinição da idéia moderna de verdade não é nada novo na história da filosofia, e mais uma vez a originalidade posmoderna pode ser questionada.

Leia o artigo completo: A morte e a Morte da Modernidade: Quão Pós-moderno é o Posmodernismo - Ricardo Quadros Gouvêa

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Senhor do meu destino

"Vinte e quatro anos, homem, senhor do meu destino, formado em Direito, sem saber fazer nada. Nada tinha aprendido, nenhum entusiasmo trazia dos anos de aprendizagem. Agora tudo estava terminado. Um simples ato de fim de ano, e a vida devia tomar outro rumo. Vamos ver para que dá o senhor, me disse o meu avô no dia de minha chegada.”

José Lins do Rego - Banguê

Estética e arte moderna

"Um dos sectores, onde mais se acentua a crise actual, é no da Estética e das realizações artísticas. Uma investigação histórica da arte, para considerá-la em sua concreção, deve visualiza-lá, não só como uma expressão da catharsis humana, isto é, a exteriorização da emoção do artista, como também da alma da cultura à qual pertence, tendendo, sobretudo, a expressar um pensamento místico e simbólico.

A arte egípcia do antigo Império ou a arte hindu revelam o simbólico com uma evidência meridiana. O mesmo pode dizer-se da arte chinesa, da arte árabe, que não é apenas decorativa, como se costuma dizer, e recuando mais distante, a arte dos povos chamados primitivos revela sempre êsse sentido simbólico e, conseqüentemente, místico.

Dizemos místico, porque o mistério é o que se oculta, e o símbolo, referindo-se sempre a um simbolizado, é êle, enquanto tal, outro que o simbolizado ao qual se refere.

Quem compreende o significado do símbolo, sabe que êle aponta a um referido que se oculta. Eis por que a simbólica é sempre uma via mística, pois, busca a verdade do que se cala (myô, eu calo).

Mas apesar dêsse sector marcante em tôdas as culturas, há sempre, em tôda a arte, a presença da realidade histórico-social. Por isso, há nela algo da realidade, além da expressão da alma do artista, formando êsses três elementos a estructura concreta e histórica de qualquer manifestação estética.

Se atentarmos para o Ocidente, veremos que a arte, eminentemente mística, surgida nos diversos períodos do cristianismo, torna-se acentuadamente profana, quando a unidade religiosa entra em crise. Assim, o Renascimento já nos revela a predominância do profano, mesmo quando se trate de temas religiosos.

Vê-se, assim, que a diácrise se processa na arte, no período do Renascimento, mais acentuada do que em outros anteriores. Na chamada "arte moderna", do classicismo para cá, essa diácrise é mais evidente.

O chamado movimento clássico foi apenas uma tentativa de manter a unidade, a sincrise dos valôres eminentemente objectivos e técnicos, que haviam alcançado os pontos eminentes, durante o processo artístico, não só greco-romano, como também fáustico. Dessa forma, o classicismo era uma síncrise que não evitava, nem podia evitar totalmente a diácrise em processo de expansão, e tendia a agravar-se.

O ideal clássico de manter e conservar os valôres mais altos encerrava a arte dentro de cânones objectivos, e não poderia resistir à catharsis, à manifestação emocional do artista, que já vivia a crise agravada pelas condições histórico-sociais.

Portanto, não era de admirar que a arte moderna fôsse uma arte diacrítica, em que valôres, tomados isoladamente, passassem, não só a predominar na unidade da ordem estética, como até a tornarem-se excludentes de outros valôres.

Se uma obra de arte era decorativa também, o decorativismo vai apenas actualizar êsse valor, esquecendo de harmonizá-lo com os outros.

Todos os ismos, que surgiram nestes dois últimos séculos, foram uma manifestação da diácrise, uma separação dos valores estéticos, e, consequentemente, o artista tem sido, nesta época, um símbolo da crise que eminentemente se agrava em nossos dias.

Aquêles que julgam que a arte moderna é uma antecipação do futuro têm uma visão errônea dos factos, porque, na verdade, o artista apenas tem vivido o momento de agravamento da crise, ou, quando muito, o futuro próximo, ainda dentro do campo da diácrise, sem, na verdade, ter oferecido nenhuma solução estética ao problema que aflige tão intensamente o homem actual.

Ao assistirmos uma exposição de arte moderna, sentimos crescer em nós angústias, que nos avassalam, e não encontramos, nessa arte, uma compensação à grave situação diacrítica de nossos dias.

É, portanto, facilmente compreensível, que os que se dedicam ao estudo da estética estejam imersos na maior confusão, e a heterogeneidade de pontos de vista seja tão imensa que, dificilmente, dois críticos actuais poderão encontrar-se num campo comum. A própria crítica se desmerece constantemente, devido aos excessos de aplausos aos que correspondem ao ponto de vista de críticos, ou excessos de reprovação à obra por êles não sentida nem entendida.

Conseqüentemente, as incompreensões aumentam, e não se pode esperar, para tão cedo, que os artistas penetrem num caminho em que a arte corresponde directamente ao sentir da humanidade, como sucedeu em outros períodos históricos. Pode-se dizer, sem exagêro, que a arte moderna é uma arte totalmente divorciada da alma da cultura, porque esta já cessou de realizar o maior, e apenas vive dos productos que ela gerou nos seus períodos mais altos.

Muitos costumam dizer que o artista é um profeta. E há algo de verdadeiro nessa afirmação. O excesso de abstractismo na arte moderna corresponde aos excessos de abstractismo em outros sectorês, o que, por sua vez, é uma manifestação da diácrise. Nesse caso, o artista moderno profetiza o futuro próximo da total decadência em que vivemos, que é o agravamento exagerado dos abismos, interpostos entre os elementos componentes da nossa cultura, cujos excessos são explorados cada dia mais intensamente, e provocam o movimento da síncrise, que se impõe, aspirado por todos, e que um dia, depois das grandes comoções por que passará a sociedade, abrirá caminho para uma nova era que será fatalmente de universalidade, ecumênica. E êsse momento surgirá quando os homens, que construirão os fundamentos da nova cultura, tenham encontrado aquêle ponto de unificação, cujas características formais desejamos analisar, ao entrarmos no capítulo final desta obra."

Mário Ferreira dos Santos - Filosofia da Crise